As Marias – Eunice Pinheiro Sousa

A vida da gente é feita de Marias. A Maria Mãe, a Maria Tia, a Maria Irmã, a Maria Prima.

Na última edição do Produtor Terra Nostra, pude recordar uma Maria muito querida, através do seu filho Eduardo Pinheiro Soares. A minha tia Maria das Neves que, como diz o filho, uma pessoa muito esperta e querida de todos, que o apoiou sempre na sua luta e entrega à lavoura. A minha tia deixou-nos muito cedo, mas cresci a ouvir as histórias que marcam uma vida e nos deixam um registo da nossa herança geracional. Grande parte destas histórias chegaram-nos pela minha avó, a Maria Natália. Que também recordava a sua mãe, Maria Inês.

À semelhança da minha tia e da minha avó, a minha bisavó Maria Inês foi uma mulher forte, de notável inteligência e visão muito à frente do tempo de uma mulher que vivia num meio rural, nascida na primeira década do século passado. Sabia ler e escrever irrepreensivelmente e com um discurso claro e fluente. Era ela que instigava o meu bisavô António a investir e ela própria negociava os financiamentos, protegida no seu xaile, num saco uma laranja e uma capiada de mão de milho, apanhava o charambão e ia de Ponta Garça ao Banco de Portugal, em Ponta Delgada, negociar com os Doutores de igual para igual, muitas vezes tendo de pernoitar ao relento.

Mãe de sete filhos, a primogénita a minha avó Maria Natália herdou-lhe os traços, a força de trabalho, a determinação independente, a inteligência rara numa mulher que ainda nasceu num meio e época que não era permitido ao seu género sonhar e concretizar. Para a minha avó estas proibições diziam pouco. Casou e teve três filhos, mas fez uma vida de luta e trabalho que marcou uma geração. Primeiro na ilha de Santa Maria, para onde foi morar após o casamento e lá ficou, um tanto a contragosto, durante vinte anos. Na recusa do meu avô Alfredo em regressar, a minha avó fê-lo sozinha. De Santa Maria trouxe o negócio da massa sovada que lá iniciara e, novamente em Ponta Garça, empregou muita rapariga, jovens adultas, a quem ela aconselhava sempre que nunca deixassem de trabalhar pela sua própria autonomia financeira.

A minha avó Maria Natália não gostava lá muito de uma figura política. Penso que não incorro em pecado algum em dizer, sendo um facto verdadeiro, que sempre que o ilustre socialista Mário Soares aparecia na televisão, seguiam-se um conjunto de impropérios, dos quais ela não se orgulhava e que a faziam apagar o aparelho. A minha avó Maia Natália era do PPD, do partido de Sá Carneiro.

Numa altura em que muito se fala da participação das mulheres também na política, em que os regimes de quotas criam um sistema de obrigatoriedade na colocação de mulheres nas listas aos mais variados órgãos de governação e representação política, fosse a minha avó Maria Natália uma mulher deste tempo teria ela o lugar que desejasse. Não por uma questão de formalidade imposta, mas pelas demonstradas provas de capacidade visionária, da sua sabedoria vivida, pela sua postura e presença que a ninguém escapava, mas, acima de tudo, pela forma desprovida de vergonha com que ela assumia a resolução de um assunto, fosse ele qual fosse. A resposta nunca lhe faltava, asseverava categoricamente quem se lhe impusesse num contrário desonesto ou descabido. A filha mais velha, não invejou a condição de género dos irmãos. Também com eles foi prova de uma força de espírito maior e exemplo conselheiro.

Fosse a minha avó Maria Natália uma mulher deste tempo e poderíamos conhecer uma mulher de ímpar liderança. Não tenho dúvidas que Social Democrata.

As Marias da gente, contam-nos muitas histórias. Sintamos orgulho e cresçamos com elas, que no seu tempo raras oportunidades tinham e, ainda assim, muitas conquistas alcançaram. Estas Marias não se lamuriaram da sua condição, da sua vida fizeram prova de que a igualdade e os direitos assistem a todos, sem distinção de género. Mas fizeram-no vivendo, fizeram-no sendo mulheres, mães, filhas, irmãs.

Eu também sou Maria, e com elas espero ter herdado e aprendido mais do que um nome.